uMA ENCANTADA CHUVA DE ESTRELAS PARA TODOS OS VISITANTES...

NOTURNO...

Tudo ficou mais leve no escuro da casa. As escadas pararam de repente no ar
Mas os anjos sonâmbulos continuam
subindo os degraus truncados.
Atravessando o espelho como se entrassem
numa outra sala
O sonho vai devorando os sapatos
Os pés da cama
O tempo
Vovó resmunga qualquer coisa no fim
do século passado.

Mário Quintana 

ANJOS DO MAR...

As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!

E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!


Que dormem, que sonham — e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!

E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!

Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Porque não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar!

Álvares de Azevedo


OS ANOS SÃO DEGRAUS...

Os anos são degraus; a vida, a escada.

Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
só Deus pode fechá-la,
pode abri-la.


São vários os degraus: alguns sombrios,
outros ao sol, na plena luz dos astros,
com asas de anjos, harpas celestiais;
alguns, quilhas e mastros
nas mãos dos vendavais.


Mas tudo são degraus; tudo é fugir
à humana condição.
Degrau após degrau,
tudo é lenta ascensão.


Senhor, como é possível a descrença,
imaginar, sequer, que ao fim da estrada
se encontre após esta ansiedade imensa
uma porta fechada
— e nada mais?

Fernanda de castro

ANJOS OU DEUSES...

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.

Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,

Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem
E nós não desejamos.

Ricardo Reis (fernando Pessoa)

CLEPSIDRA...

Il pleure dans mon coeur

Comme il pleut sur la ville.

Verlaine


Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.


Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.


Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.


Camilo pessanha (1867-1926)